sábado, 19 de setembro de 2009

CONVIVENDO COM A MORTE

“A morte voluntária é a mais bela. Nossa vida depende da vontade de outrem; nossa morte, da nossa. Em nenhuma coisa, mais do que nesta, temos liberdade de agir”. -Michel de Montaigne

Todos os dias, bem cedinho, com seu hábito de acordar ainda na madrugada, ele se preparava para a morte. Mentalizava, enquanto banhava-se e escovava os dentes, quais seriam os trajes e adereços que lhe cobririam o corpo em mais um dia em que este – o corpo, levaria sua companheira alma para o patíbulo. A paramentação era torturante, é certo, mas ele necessitava dessa pequena dose de bálsamo para aliviar-se. Vestia-se, lentamente, enquanto atento não desviava a atenção do aparelho de televisão sobre a cômoda em seu quarto, tentando suprir sua insaciável fome por informação, que homeopaticamente ia lhe tirando a esperança de sobrevivência, minando suas forças e acelerando aquela caminhada final.

Acreditava que a força que lhe restava, estava intrinsecamente ligada à preocupação familiar. Preocupava-se com todos, como se a ele fosse atribuída à obrigação de cuidar, zelar e mantê-los seguros. De formação cristã, ainda relutava em seu desejo, quando lhe vinha à mente os ensinamentos de Tomás de Aquino, para que além de cuidar de sua comunidade, deveria também amar a si mesmo e, fundamentalmente, que a vida é um bem dado por Deus, cabendo apenas a Ele determinar sua duração. Mas, diferentemente, esse sentimento apenas aumentava, em certas ocasiões, sua inação frente às diversidades. Recaia novamente num vazio angustiante, tomado pelos ensinamentos estóicos de Cícero e Sêneca, os quais “o essencial não é simplesmente viver, mas viver bem”, devendo-se viver o quanto o é para ser vivido, não o quanto pode ser vivido. Arrastava-se cotidianamente em busca de uma felicidade e realização, apenas e tão-somente deixando-se levar pela racionalidade da natureza e indiferente ao que a vida externa lhe apresentava. Não sabia mais utilizar-se com sabedoria das coisas lhe apresentadas pelo mundo externo.

Aquele trapo humano não resistia mais a dor. Nada mais do que outrora lhe motivava, podia-lhe mover qualquer manifestação de satisfação, felicidade, alegria... Inerte, permanecia assim até mesmo diante da florada dos ipês, que no final do verão regional pululava por toda a região, na cidade e nos campos. Contrário a exuberância daquele amarelo reluzente, que deveria ativar a capacidade intelectual, motivando novos pensamentos, propiciando, organizando e assimilando ideias inovadoras, inexplicavelmente ele extraia o medo, o temor. Apenas as sensações perturbadoras.

Dirigia-se ao panteão dos “homens deuses” para mais um dia de serventia, donde extraia o necessário para manter a matéria. Mas também era de lá que extraia a maior dosagem do veneno que lhe colocava nessa letargia, nessa angústia e nesse sofrimento. Foi lá que lhe roubaram os melhores anos de sua vida, lhe afastaram da família, dos amigos, de seus cultos e de seu lazer. Foi também lá que lhe desvaneceram a alma. Aquele templo já lhe proporcionou encanto e felicidade, provocando-lhe fervor naquela tarefa. Agora, contudo, lhe restou tão-somente as trinta moedas em pagamento pela traição que fizera consigo.

Um questionamento perturbador lhe vinha à mente constantemente. Aquele feito por Friedrich Nietzsche , que “se um dia ou uma noite, um demônio se esgueirasse até você e, penetrando na sua mais solitária solidão, lhe dissesse: ‘Esta vida, da maneira como você vive agora e já viveu antes, você terá que vivê-la mais uma vez e outras inumeráveis vezes; e não haverá nada de novo nela, mas cada tormento e cada alegria e cada pensamento ou suspiro e cada coisa imensuravelmente pequena ou grande em sua vida, deverá retornar a você - tudo na mesma sucessão e seqüência...’ Como não atirar-se ao chão, rangendo os dentes e amaldiçoando o demônio que assim lhe falou? Ou você alguma vez já experimentou aquele formidável momento em que teria respondido a ele: ‘És um deus, e jamais havia escutado algo mais divino.’... Como teria você se tornado tão bem disposto perante você mesmo e a vida para chegar a não desejar coisa alguma mais ardentemente que este supremo desígnio e esta confirmação eterna?”. A depender do ensinamento nietzscheano, ele que não mais desejava ardentemente aquela situação, ainda não se tornara um “super-homem”, um sobre humano, pois a mais remota possibilidade desse acontecimento se tornar realidade lhe deixava em pavor insuportável, ficando claro que ainda estava amarrado à mentalidade de escravo.

Não era um ímpio, e restava a esperança que lhe fosse oferecido, em despedida, como nos velhos rituais africanos, presentes diversos, levados por aqueles que lhe goste, para que ao reencontrar seus antepassados, possa demonstrar pelas oferendas recebidas o quanto era amado em sua vida terrena. Seu desejo era que na cerimônia não faltasse dança, música, comida, bebidas e visitantes. Somente isso. Aquele ser sincrético estava a definhar claramente, e os sinais dessa decomposição espiritual eram latentes; ele que vivera dionisiacamente, já esboçava vestígios narcisista, falando de sua morte na terceira pessoa.

Então, amigos, por misericórdia, ofereçam-lhe-me o instrumento da partida.

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