sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

MINHA BUSCA


Nas contínuas noites que se aproximaram, não entraram em meu jardim para levar flores ou rosas. Deixaram-nas lá, lindas e floridas, as gloxínias, amarílis, gérberas, íris, hortênsias e folhagens. Ao contrário, delimitaram-me em extensas fronteiras planetárias, continentais, nacionais, estaduais e municipais.

Impuseram-me, ainda, quintais, com cercas, alambrados, enormes muros reforçados por um quase impenetrável sistema de segurança com cercas elétricas, circuitos fechados de televisão, além de infindáveis raças de cães ferozes e obcecados pela violência. Tudo preparado para a separação.

Além de estradas que levam, mas também separam, foram abertas ruas, avenidas, alamedas, vielas, travessas e outras vias para separar bairros, conjuntos, quadras, casas e pessoas, onde fui ficando aprisionado.

Separaram-nos por raças, classes sociais, crenças e credos, siglas partidárias, categorias profissionais, sexualidade e desejos sexuais. Até o paladar foi usado para estabelecer a separação e, na maioria das vezes, a segregação.

Uns utilizam-se de velozes naves aéreas, enquanto outros usam veículos terrestres coletivo ou particular; havendo ainda aqueles que fazem uso da tradicional, longa e penosa caminhada, por opção ou necessidade. Sim, o meio de transporte também foi usado para dividir.

Decidiram que precisaríamos de líderes, governantes e mandantes. As formas de escolhas são as mais diversas, havendo casos em que sequer escolha há. O fato é que ai está ele, o Estado, todo poderoso e gestor sobre nossas vidas. Mesmo a propalada democracia, quando resolve dar as caras ao balcão, sabemos, como o poeta Eduardo Alves da Costa em seu “caminho com Maiakóvski”, que ela tem uma espada a nos espetar as costelas.

Entre as várias ditaduras, antes privilégio das armadas, temos hoje as da vestimenta, do físico, do pensamento, do comportamento, ideológica, alimentar e, se sairmos do primeiro plano de visão, percebemos até mesmo a religiosa. A não adesão ou dissidência pode resultar em castigos severos, oxalá não levemos dezenas de chibatadas atracados a um tronco por não bradarmos aleluias e améns.

Ao corpo foram acrescidas sobrepeles, com uma infinidade de desenhos, produtos, marcas e escalonáveis valores, servindo como definidor de status e, ainda, segregacionador. A exposição da pele natural passou a ser objeto de castigo. Seu toque, então, passou a ser permitida apenas sob a égide da relação constituída, de forma moderada e privada. As manifestações públicas de carinho passaram a ser, quando não castigadas, ridicularizadas.

É verdade, não entraram sorrateiramente em meu jardim para levar flores ou rosas. Mas me trouxeram essas mazelas. Trouxeram-me muito e levaram pouco. Mas o pouco que levaram vou lutar para ter de volta. Não consigo mais viver com sua ausência; sem ele não respiro, não vivo, não sinto. Perco o olfato, a audição, a visão, o tato, o paladar... vegeto apenas.

Chega. Este é meu foco. Buscarei incansavelmente até resgatar o que me foi tirado nesse tempo: EU!

sábado, 19 de setembro de 2009

CONVIVENDO COM A MORTE

“A morte voluntária é a mais bela. Nossa vida depende da vontade de outrem; nossa morte, da nossa. Em nenhuma coisa, mais do que nesta, temos liberdade de agir”. -Michel de Montaigne

Todos os dias, bem cedinho, com seu hábito de acordar ainda na madrugada, ele se preparava para a morte. Mentalizava, enquanto banhava-se e escovava os dentes, quais seriam os trajes e adereços que lhe cobririam o corpo em mais um dia em que este – o corpo, levaria sua companheira alma para o patíbulo. A paramentação era torturante, é certo, mas ele necessitava dessa pequena dose de bálsamo para aliviar-se. Vestia-se, lentamente, enquanto atento não desviava a atenção do aparelho de televisão sobre a cômoda em seu quarto, tentando suprir sua insaciável fome por informação, que homeopaticamente ia lhe tirando a esperança de sobrevivência, minando suas forças e acelerando aquela caminhada final.

Acreditava que a força que lhe restava, estava intrinsecamente ligada à preocupação familiar. Preocupava-se com todos, como se a ele fosse atribuída à obrigação de cuidar, zelar e mantê-los seguros. De formação cristã, ainda relutava em seu desejo, quando lhe vinha à mente os ensinamentos de Tomás de Aquino, para que além de cuidar de sua comunidade, deveria também amar a si mesmo e, fundamentalmente, que a vida é um bem dado por Deus, cabendo apenas a Ele determinar sua duração. Mas, diferentemente, esse sentimento apenas aumentava, em certas ocasiões, sua inação frente às diversidades. Recaia novamente num vazio angustiante, tomado pelos ensinamentos estóicos de Cícero e Sêneca, os quais “o essencial não é simplesmente viver, mas viver bem”, devendo-se viver o quanto o é para ser vivido, não o quanto pode ser vivido. Arrastava-se cotidianamente em busca de uma felicidade e realização, apenas e tão-somente deixando-se levar pela racionalidade da natureza e indiferente ao que a vida externa lhe apresentava. Não sabia mais utilizar-se com sabedoria das coisas lhe apresentadas pelo mundo externo.

Aquele trapo humano não resistia mais a dor. Nada mais do que outrora lhe motivava, podia-lhe mover qualquer manifestação de satisfação, felicidade, alegria... Inerte, permanecia assim até mesmo diante da florada dos ipês, que no final do verão regional pululava por toda a região, na cidade e nos campos. Contrário a exuberância daquele amarelo reluzente, que deveria ativar a capacidade intelectual, motivando novos pensamentos, propiciando, organizando e assimilando ideias inovadoras, inexplicavelmente ele extraia o medo, o temor. Apenas as sensações perturbadoras.

Dirigia-se ao panteão dos “homens deuses” para mais um dia de serventia, donde extraia o necessário para manter a matéria. Mas também era de lá que extraia a maior dosagem do veneno que lhe colocava nessa letargia, nessa angústia e nesse sofrimento. Foi lá que lhe roubaram os melhores anos de sua vida, lhe afastaram da família, dos amigos, de seus cultos e de seu lazer. Foi também lá que lhe desvaneceram a alma. Aquele templo já lhe proporcionou encanto e felicidade, provocando-lhe fervor naquela tarefa. Agora, contudo, lhe restou tão-somente as trinta moedas em pagamento pela traição que fizera consigo.

Um questionamento perturbador lhe vinha à mente constantemente. Aquele feito por Friedrich Nietzsche , que “se um dia ou uma noite, um demônio se esgueirasse até você e, penetrando na sua mais solitária solidão, lhe dissesse: ‘Esta vida, da maneira como você vive agora e já viveu antes, você terá que vivê-la mais uma vez e outras inumeráveis vezes; e não haverá nada de novo nela, mas cada tormento e cada alegria e cada pensamento ou suspiro e cada coisa imensuravelmente pequena ou grande em sua vida, deverá retornar a você - tudo na mesma sucessão e seqüência...’ Como não atirar-se ao chão, rangendo os dentes e amaldiçoando o demônio que assim lhe falou? Ou você alguma vez já experimentou aquele formidável momento em que teria respondido a ele: ‘És um deus, e jamais havia escutado algo mais divino.’... Como teria você se tornado tão bem disposto perante você mesmo e a vida para chegar a não desejar coisa alguma mais ardentemente que este supremo desígnio e esta confirmação eterna?”. A depender do ensinamento nietzscheano, ele que não mais desejava ardentemente aquela situação, ainda não se tornara um “super-homem”, um sobre humano, pois a mais remota possibilidade desse acontecimento se tornar realidade lhe deixava em pavor insuportável, ficando claro que ainda estava amarrado à mentalidade de escravo.

Não era um ímpio, e restava a esperança que lhe fosse oferecido, em despedida, como nos velhos rituais africanos, presentes diversos, levados por aqueles que lhe goste, para que ao reencontrar seus antepassados, possa demonstrar pelas oferendas recebidas o quanto era amado em sua vida terrena. Seu desejo era que na cerimônia não faltasse dança, música, comida, bebidas e visitantes. Somente isso. Aquele ser sincrético estava a definhar claramente, e os sinais dessa decomposição espiritual eram latentes; ele que vivera dionisiacamente, já esboçava vestígios narcisista, falando de sua morte na terceira pessoa.

Então, amigos, por misericórdia, ofereçam-lhe-me o instrumento da partida.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

MEU AMOR FLAMEJANTE


Confesso que não sei bem de onde vem essa atração. Tentei até, inicialmente, atribuir essa paixão ao velho simbolismo do encarnado, predominante nas bandeiras que carreguei por longo tempo quando de minha militância comunista, ao que fui enveredado pelas mãos do poeta e camarada Dadá, negro complexo que carrega consigo a antítese dele mesmo na vida, na arte e na paixão. Mas não era. Percebi logo, bastou rememorar meus velhos discursos, posicionamentos, ações e gestos, hoje, lapidados pela força de um bisturi que não costuma ter compaixão de ninguém: a vida. Aquela beleza me cativa, atrai e extasia por motivo bem mais forte.

Mesmo tendo vivido, visitado e passeado nos mais diversos lugares, foi aqui, nesta Zona da Mata, que despertei para esse sentimento. Não posso também ser ingrato a ponto de dizer que fui movido ou estimulado pelas belezas naturais apenas nesta região. Beleza, afinal de contas, as vejo desde o parto, nas margens do Rio Madeira, na pequena vivência da Baixa da União e naquele que terminou por me chancelar em pseudônimo, o inesquecível bairro do Areal.

Fui atrás. Precisava saber como tinha chegado a esse ponto de admiração, atração, encantamento e até mesmo de louvor. Posso estar enganado mais uma vez, como aconteceu da primeira, quando me precipitei em chegar a uma conclusão... Sei não, acredito ter encontrado o nexo causal para tamanha atração. É bem verdade, também, que sua cor influenciou substancialmente para que isso acontecesse, lembra uma pedra preciosa de idêntica beleza: o rubi.

Eis que começa mais uma vez a temporada de florada da minha paixão. Ela vem com as primeiras águas das chuvas, ainda rompendo o calor causticante e tórrido do forte verão amazônico, que judia da terra há tempo. Brota como a agradecer a Deus pelos primeiros banhos, mostrando acanhado, porém exuberante, que Ele existe – senão como tamanha beleza? Está começando a florada dos Flamboyants. Fico bobo, “abestado”, “alezado”, completamente transformado frente a sua beleza. Na mutação dos galhos secos, começando aos poucos a receber uma folhagem esverdeada, como a anunciar a beleza vindoura. Ela surge meio acanhada, com pequenos botões vermelhos... Que de repente, não mais que de repente, toma de flores por completo toda a copa. Não há como resistir a sua beleza. É esplendoroso!

O Flamboyant é nativo de Madagascar, e adapta-se com maior facilidade em clima quente, o que lhe proporciona precoce e abundante floração. O nome pomposo vem do francês, traduzindo-se “flamejante”. Ah!... Antes que esqueça, quanto ao nexo argumentado, acredito sejam vários, além daquele que pensei ser único. Vermelho é meu sangue, é a cor da paixão, está no meu combalido Flamengo, no fogo, no Garantido, nos Diplomatas do Samba e, como não poderia deixar de ser, é usado por Xangô, que me guia. Se dele tenho alguma coisa a ver, deixo a resposta para o “poetinha”, que faria 96 anos no próximo 19 de outubro:

Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Eu sou negro de cor
Mas tudo é só o amor em mim
Tudo é só o amor para mim
Xangô Agodô
Hoje é tempo de amor
Hoje é tempo de dor, em mim
Xangô Agodô
Salve, Xangô, meu Rei Senhor
Salve, meu Orixá
Tem sete cores sua cor
Sete dias para gente amar
Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor
Xangô meu Senhor, saravá!
Me faça sofrer
Ah, me faça morrer
Ah, me faça morrer de amar
Xangô, meu Senhor, saravá
Xangô Agodô